quarta-feira, 13 de abril de 2011

"PEQUENO PRÓLOGO PARA UM ATO FINAL" & "ZULEIKA DECIDE MORRER"



PEQUENO PRÓLOGO PARA UM ATO FINAL
[ator conversa com plateia, ao vivo]

Sabem há quanto tempo eu to aqui? Há quatro anos!
Sabem há quanto tempo eu existo? Há dez anos!
Quanto vale o ano humano pra um cachorro mesmo? Enfim, pra um personagem, é muito mais ainda.
Eu sou velha! E ainda por cima viva!
Sou fudida até nas patologias. Cheia de erupções cutâneas. Coceiras em todos os limites do meu corpo. Meus pés e minhas mãos. Meu cú e meu pau. Meus cotovelos e minhas axilas... fervilham de brotoejas,  que me dão o prazer-esmola da coceira, um gozo perebento e pobre que me nega o prazer maior e sublime do esquecimento, da inconsciência, do coma, do limbo, da morte e da ignorância.
A coceira é o estado mais cruel da vida!
Deus me negou a doce patologia do esquecimento. Pedi por Alzheimer, mas ganhei foi Sarna mesmo. E, quando até o mal que te aflige é miserável... a graça acaba! A ironia amarga! A cura não importa...
O mal que habita o teu corpo, já se alastrou pra minha alma.
Mas o corpo não importa. Que ele padeça, patético, em vergões, irritados, vermelhos... e sem amor!
E o amor? Gentalha! Funcionário público assalariado não tem capacidade de acessar o amor. Desculpa, mas a burocracia é outra. É entrega sem retorno: o amor é comunista. É alienígena, porque ninguém se entende nas entranhas. Amor é dissolver-se no outro. Naquele que se liquefaz pra você, para, juntos, tornarem-se...
Nada!
O amor é o nada! Ausência de adjetivo! De nobreza! Porque é inerente, inevitável, invisível, incolor e não te dá mérito nem crédito nenhum.
O AMOR É O PATRÃO QUE NÃO ELOGIA O TEU ESFORÇO, MAS TE PAGA UM SALÁRIO JUSTO.
O amor nunca está em você... você... você... sempre você! Que coisa! Só é reconhecível no outro.
Amor próprio não é amor. É tratamento. E pode ser substituído por remédios. Assim como punheta não é sexo.
Punheta é a sua mãe te dizendo que você é o menino mais bonito e inteligente que tem!
Punheta é tudo o que a gente quer ouvir.
E o gozo é um parto, nojento, que te impõe  a realidade...
... que você não é o mais bonito, nem o mais inteligente que tem! Você não passa de um bicho, lambuzado de vida que encontra a morte na nossa atmosfera. O melhor destino para as células reprodutivas.
Amor é morte. Morte que acolhe. Morte que respira, dormindo de conchinha com você...
Eu quero morrer... no amor.


ATO FINAL – ZULEIKA DECIDE MORRER
Ou “Isto não é uma homenagem ao Paulo Coelho”

[a câmera permanece parada no tripé, em plano aberto, durante toda a cena. Sala de estar com sacada ao fundo. O ator atravessa a cena, vez que outra, sempre ao telefone. Todas as ações, exceto a última, acontecem fora de quadro. São somente ouvidas.]

- alô? C.V.V?
- eu vou me matar!
- não... não... não vem com essa conversa... já to me matando!
- eu amarrei a corda de varal no ventilador do teto... mas to com medo que ele não agüente... o peso!
- 75...
- ta bom, ta bom... 87!
- vai a merda... já ta amarrado e eu vou pular... brigado por nada!
[barulho de coisa quebrando]
- ai, ai... to cheia “cheia” de gesso na cara
- alô? Ta ai ainda?
- me dá uma idéia que presta então? E se me mandar pruma igreja vou aí e te mato antes de me matar...
- ai não! Afogamento não... tem que pegar ônibus pra ir pra praia e eu tenho nojo de rio! Já tentei me afogar na banheira também e não funcionou...
- hmm, eu sei... banheira quente, corte reto... mas eu não posso ver sangue sabe...
- não, não... desde que eu vi menstruação... que nojo! Bom, melhor que virar um indivíduo, mas mesmo assim... e vai que eu corto errado, pego um nervo, um tendão, sei lá... imagina a dor? Deus me livre!
- aii, sei lá... queria algo que eu pudesse tomar e deixar rolar... mas eu não tenho tarja preta aqui... nem receita meu senhor... não, eu não tenho dinheiro pra comprar com receita nem sem receita! Eu to fudida meu senhor! Por que o senhor acha que eu quero me matar? Se eu tivesse dinheiro eu fazia uma lipo, uma plástica, me internava num SPA e ia ser feliz... (chora)
- não, não não! Discordo! A maioria dos suicídios deve ser é de gente que não sabe usar o dinheiro que tem! Não merece o dinheiro que tem... tem mais é que morrer mesmo...
- acho! Acho sim! Se eu tivesse dinheiro tava bem feliz em fidji, em fudji, nas ilhas “canalhas”, na casa do caralho! Escuta... não tem algo que eu tenha em casa e possa tomar... tipo, um desinfetante de vaso sanitário? Eu posso botar a maionese no sol!
- ah, dói é? Ah não, então não... é mesmo... tá sempre chovendo ultimamente...
- não achei piegas, achei poético, bucólico...
- não... não quero! Eu quero é que o senhor me ajude... senão vou tomar o desinfetante de patente, duvida?
- como é que é?
- hmm interessante...
- e é certo, né?
- dizem que se a queda for grande, morre do coração antes de cair...
- no quinto andar...
- é... deve ser uma adrenalina só...
- isso... como num parque de diversões...
- e se eu não morro e fico tetraplégica e não consigo nem me matar depois? Vou fazer o quê? Tentar me morder? Prender a respiração?
- sei... entendi... isso sim é um bom conselho...
- brigado... obrigado por tudo, Sr C.V.V.
[som do telefone desligando. Ator entra em quadro, caminha até a sacada, de costas pra câmera, sobe no parapeito]
- ... se joga...
[pula. Blackout. Pausa. Câmera abre em close sobre ator, tetraplégico, em uma cadeira de rodas, tentando morder a si próprio. Balbucia, sem precisão]
- puta que pariu!
FIM

Um comentário:

  1. Olha, Zuleika, morri (brinks, tô vivona) de vontade de fazer esse papel, arrasou!

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